Às vésperas do Carnaval, tomando aquele chope entre bloquinhos em Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, engajei numa discussão sobre letras de marchinhas clássicas e suas duas características mais marcantes: (1) o duplo sentido sacana, frequentemente com insinuações sexuais mais ou menos escancaradas, e (2) o comentário ou sarcasmo em cima de algum acontecimento da época, do mês, da semana antes do Carnaval daquele ano.
E ficamos especulando sobre o que teria feito “o velho na porta da Colombo; foi um assombro, sassaricando”.
“Sassaricando”, claro, era uma deliciosa metáfora para aquilo que todo mundo faz pra exorcizar a vida dura, “levada no arame” – uma atividade tão natural e acessível que, mesmo “quem não tem seu sassarico, sassarica mesmo só, porque sem sassaricar, esta vida é um nó”.
E o “a porta da Colombo”, claro, é a famosa Confeitaria Colombo no centro do Rio de Janeiro, que era o ponto de encontro dos ricos, poderosos e figurões desde sua fundação, em 1894.
Em seu imponente salão com cara e cheiro de Belle Époque, gente como Getúlio Vargas, Machado de Assis, Rui Barbosa, Villa-Lobos e Juscelino Kubitscheck tiveram mesa cativa. Mas em 1952, quando a marchinha, composta por Luiz Antônio, Oldemar Magalhães e Zé Mario, explodiu na voz e imagem da vedete Virginia Lane, a Colombo tinha se popularizado. Passou a servir um animado chá das cinco para a classe média alta que a frequentava – e a paquera de fim de tarde era a moeda corrente.
Não encontrei nenhuma notícia sobre algum senhorzinho exibicionista na porta da Colombo, no entanto; a marcha parece se referir a uma situação mais arquetípica – velhos assanhados dando em cima das madames, devidamente aditivados por um drink autoral da confeitaria (e isso é importantíssimo para a nossa história): um conhaque enriquecido com a geleia de mocotó (ou seja, feito a partir da pata do boi) que a confeitaria tinha inventado. Virou o produto mais famoso de lá. Dizem que o drink tinha poderes afrodisíacos. Fast forward para os anos 1980 e a infância do autor deste texto.
A Geleia de Mocotó realmente devia dar uma energia extra, porque a TV Globo exibia durante todo o dia – incluindo programas infantis – propagandas da Geleia de Mocotó Inbasa, que concorria com o Biotônico Fontoura como fonte de energia e vivacidade para crianças (que criança precisa de energia extra?, pergunto hoje, sendo pai e observador estupefato de uma criança de seis anos destruindo a casa). O que isso tem a ver com Carnaval? Tudo.
Porque a Globo lançou uma divertida novela das sete em 1987 chamada Sassaricando, estrelada por Paulo Autran e Tônia Carrero. A música de abertura era a já clássica marchinha, e ninguém menos do que Rita Lee (artista da Som Livre, gravadora da Globo) fora convocada para gravar uma versão atualizada da canção.
A versão de Rita, como não podia deixar de ser, é ainda mais anárquica do que a original: nela, “sem sassaricar, essa vida é um ó” e não um “nó”; e o verso do velho na porta da Colombo fora substituído por um inacreditável “sentaram no ovo do Colombo”.
Durante a minha pesquisa arqueológica pela mitologia carioca, eu imaginava que Rita Lee teria feito isso para aumentar a abrangência da da letra da música (afinal, quem fora do Rio saberia que a Colombo era a centenária confeitaria no Centro?).
Mas fui descobrir um final inesperado e que explica as incessantes propagandas da Geleia de Mocotó Inbasa naquela mesma época: acontece que Roberto Marinho era o dono da fábrica da tal geleia de mocotó, e o principal concorrente do produto era a Geleia de Mocotó Colombo (sim, a criação da Confeitaria Colombo – que, àquela altura, tinha sido vendida para uma empresa que queria mesmo era a geleia para ser comercializada nos supermercados de todo o país).
O dono da Inbasa e da Globo tinha proibido qualquer menção à Colombo na emissora, para proteger a sua própria geleia. Logo, a produção da novela teve de mudar a letra da música de abertura.
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Rita Lee, dona do próprio nariz e sacana que só ela – aproveitando-se de tempos mais liberais – meteu logo um “sentaram no ovo do Colombo, foi um arrombo, sassaricando”. Ela teve de ceder e “arrombo” deu lugar ao “assombro” original, mas é isso.
Ou seja: um verso que você ouve num bloquinho contém cem anos de intrigas palacianas, conspirações corporativas e tensões criativas.
A propósito: Roberto Marinho vendeu, em 1995, dez anos depois da novela, a Inbasa para a Arisco. A Colombo também havia sido adquirida pela mesma Arisco em 1992 – de modo que a guerra da geleia de mocotó se encerrou pela mão nem tão invisível do mercado.
A Arisco, por sua vez, acabou vendida no ano 2000 por US$ 490 milhões para a Unilever, que até hoje produz e comercializa a geleia de mocotó, sob a marca Arisco. Ah! E, em 2002, a Confeitaria Colombo – que fora carregada como penduricalho em todas essas transações corporativas, além de ter sido tombada como Patrimônio Histórico do estado do Rio de Janeiro em meados dos anos 80 – foi vendida pela Unilever para uma família carioca que, desde então, lhe devolveu o charme e a pompa histórica.
E, ninguém perguntou, mas eu ainda assim prefiro o verso arrombador da Rita Lee ao original – só porque é a Rita).
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Bruno Vaiano
Fuente de esta noticia: https://super.abril.com.br/cronica/sassaricando-a-historia-por-tras-do-ovo-do-colombo/
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